O Acordo Ortográfico: inútil e prejudicial
por ANSELMO BORGES, em 4-04-2012
Escola vem do grego scholê, que significa ócio. Mas este ócio nada tem a ver com preguiça. Do que se trata é do tempo livre para o exercício da liberdade do pensar, do aprender e do tornar-se cidadão enquanto ser humano pleno e íntegro, numa sociedade livre. Sempre pensei - uma das heranças do meu pai - que a escola deve ser o lugar da saída da ignorância e da opressão, em ordem ao progresso e à realização plena do ser humano. Lugar de educação e formação.
A palavra educação vem do latim: educare (alimentar) e educere (fazer sair, dar à luz, elevar). Cá está: alimentar e fazer com que cada um/a venha à luz, realizando as suas potencialidades, segundo o preceito paradoxal de Píndaro: "Homem, torna-te no que és": o Homem já nasce Homem, mas tem de tornar-se plenamente humano.
Aí está a razão da educação como o trabalho mais humano e humanizador, de tal modo que o filósofo F. Savater pôde justamente considerar os professores "a corporação mais necessária, mais esforçada e generosa, mais civilizadora de quantos trabalham para satisfazer as exigências de um Estado democrático". Porque o que é próprio do Homem não é tanto aprender como "aprender de outros homens, ser ensinado por eles".
Claro que, assim, sou a favor de uma formação holística. O ser humano não pode crescer apenas no plano científico e técnico: precisa também da estética, da ética, da literatura, da filosofia, da música, da história, da geografia, da religião... Mas julgo que o Português e a Matemática são fundamentais.
E é aqui que se coloca a questão do Acordo Ortográfico. Para que serve? Unificar a ortografia? São tantas as excepções que não se vê unificação! E a Inglaterra preocupa-se com a unificação do inglês? E ainda não foi ratificado por Angola e Moçambique. O jornal oficioso Jornal de Angola escreveu mesmo, justificando a sua não aceitação: "não queremos destruir essa preciosidade (a língua portuguesa) que herdámos inteira e sem mácula" e: "se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes de mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras. Há coisas na vida que não podem ser submetidas aos negócios".
A maior parte dos colunistas bem como a generalidade dos jornais ignoram-no. Não há consenso para a sua aplicação. Graça Moura suspendeu-a no Centro Cultural de Belém (CCB). Nos documentos oficiais da própria CPLP continua a não ser aplicado, passando-se o mesmo com a Academia das Ciências, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a Fundação de Serralves, a Casa da Música. Um juiz do Tribunal de Viana proibiu a sua utilização. O secretário de Estado da Cultura admitiu que poderá ainda haver ajustamentos. O filósofo José Gil classificou-o como "néscio e grosseiro". O eurodeputado Paulo Rangel escreveu: "O gesto no CCB é o início de um movimento, cada dia mais forte, de boicote cívico a uma mudança ortográfica arrogante e inútil."
Sem querer pormenorizar (o espectáculo é cada vez mais triste, pois já não tem espectadores, mas "espetadores" e os egípcios são cidadãos do "Egito"; quando um aluno escrever "a recessão do texto", para dizer "a recepção do texto", como explicar-lhe que não é recessão, se é de recessão que constantemente ouve falar?), considero-o isso mesmo: inútil. Que vantagens trouxe? Assim, em tempos de crise, para quê gastar tanto dinheiro na sua implementação? Afinal, quem lucrou, e muito, com ele?
Mas não é só inútil. Veja-se esta antologia de escrita, colhida em trabalhos académicos: "se vi-se-mos", "há-dem ver" (mas isto até ministros dizem), "se nos entretermos", "o homem dasse a conhecer", "deve-se dizer não há violência", "há-ja compreensão", "isso nada tem haver com o real", "à muito que é assim", "tratam-se de questões complexas", "é assim; senão vejamos"; "haviam imensos erros". Se é assim, sem o Acordo, o que vai ser com a confusão em curso do Acordo? Ele não é, portanto, apenas inútil: é prejudicial.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Aí está a razão da educação como o trabalho mais humano e humanizador, de tal modo que o filósofo F. Savater pôde justamente considerar os professores "a corporação mais necessária, mais esforçada e generosa, mais civilizadora de quantos trabalham para satisfazer as exigências de um Estado democrático". Porque o que é próprio do Homem não é tanto aprender como "aprender de outros homens, ser ensinado por eles".
Claro que, assim, sou a favor de uma formação holística. O ser humano não pode crescer apenas no plano científico e técnico: precisa também da estética, da ética, da literatura, da filosofia, da música, da história, da geografia, da religião... Mas julgo que o Português e a Matemática são fundamentais.
E é aqui que se coloca a questão do Acordo Ortográfico. Para que serve? Unificar a ortografia? São tantas as excepções que não se vê unificação! E a Inglaterra preocupa-se com a unificação do inglês? E ainda não foi ratificado por Angola e Moçambique. O jornal oficioso Jornal de Angola escreveu mesmo, justificando a sua não aceitação: "não queremos destruir essa preciosidade (a língua portuguesa) que herdámos inteira e sem mácula" e: "se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes de mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras. Há coisas na vida que não podem ser submetidas aos negócios".
A maior parte dos colunistas bem como a generalidade dos jornais ignoram-no. Não há consenso para a sua aplicação. Graça Moura suspendeu-a no Centro Cultural de Belém (CCB). Nos documentos oficiais da própria CPLP continua a não ser aplicado, passando-se o mesmo com a Academia das Ciências, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a Fundação de Serralves, a Casa da Música. Um juiz do Tribunal de Viana proibiu a sua utilização. O secretário de Estado da Cultura admitiu que poderá ainda haver ajustamentos. O filósofo José Gil classificou-o como "néscio e grosseiro". O eurodeputado Paulo Rangel escreveu: "O gesto no CCB é o início de um movimento, cada dia mais forte, de boicote cívico a uma mudança ortográfica arrogante e inútil."
Sem querer pormenorizar (o espectáculo é cada vez mais triste, pois já não tem espectadores, mas "espetadores" e os egípcios são cidadãos do "Egito"; quando um aluno escrever "a recessão do texto", para dizer "a recepção do texto", como explicar-lhe que não é recessão, se é de recessão que constantemente ouve falar?), considero-o isso mesmo: inútil. Que vantagens trouxe? Assim, em tempos de crise, para quê gastar tanto dinheiro na sua implementação? Afinal, quem lucrou, e muito, com ele?
Mas não é só inútil. Veja-se esta antologia de escrita, colhida em trabalhos académicos: "se vi-se-mos", "há-dem ver" (mas isto até ministros dizem), "se nos entretermos", "o homem dasse a conhecer", "deve-se dizer não há violência", "há-ja compreensão", "isso nada tem haver com o real", "à muito que é assim", "tratam-se de questões complexas", "é assim; senão vejamos"; "haviam imensos erros". Se é assim, sem o Acordo, o que vai ser com a confusão em curso do Acordo? Ele não é, portanto, apenas inútil: é prejudicial.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
in http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2419561&seccao=Anselmo Borges&tag=Opini%E3o - Em Foco&page=-1
Espero, ou melhor, desejo, que o Professor J. C. das Neves tenha lido este artigo do Professor e Pe. Anselmo Borges.
Aristocracia ortográfica
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES, 27 Fevereiro 2012
Nesta coluna nunca se comentou o Acordo Ortográfico. Em tema muito específico, com reputados especialistas envolvidos em polémicas violentas, recomenda-se silêncio respeitoso. Mas ultimamente o jornal inclui no fundo do artigo a referência: "Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico", o que merece explicação.
Esta opção não implica tomada de posição na contenda. Sobre o tema, permaneço perplexo e expectante. Tenho por princípio cumprir a lei e fiz esforços sérios para aprender as novas regras. Mas confesso a dificuldade em "escrever com erros" e, existindo ainda escolha, prefiro manter a situação.
No que toca às partes em confronto, vejo erros dos dois lados. Os que tomam o novo Acordo como atentado à cultura nacional esquecem que a nossa escrita não é a de Gil Vicente, nem sequer de Eça. O que hoje usamos vem do Formulário Ortográfico de 1911, resultado da ânsia legalista da Primeira República, cuja arrogância ingénua aspirava a regulamentar tudo. O século XX viu atribulada história de acordos na lusofonia, todos falhados (ver www.portaldalinguaportuguesa.org/acordo.php).
Os que apregoam a nova regulamentação como indispensável exageram o significado de pequenos detalhes. Existem importantes diferenças regionais em todas as línguas dominantes, sem que tal prejudique a sua influência. Basta abrir o Thesaurus do editor Word para ver 21 alternativas de Spanish, 16 de English, seis de French e duas de Portuguese convivendo pacificamente.
Em toda a questão, tenho uma única ideia clara. O projecto de regulamentação legal da ortografia é, em si mesmo, manifestação de um dos traços mais fortes da nossa cultura. Não seríamos portugueses se não gastássemos tempo e recursos numa discussão deste tipo. Apesar de alterarem a escrita, são os defensores das novas regras ortográficas quem realmente manifesta o fundo da nossa tradição. Este aspecto merece atenção, até por se relacionar com a origem da crise económica.
Portugal é um país culturalmente aristocrata. A atitude nacional típica é de confiança em elites, especialistas, leis e políticas. Desconfiamos instintivamente da gente comum, de mercados e forças sociais livres. A nossa direita é naturalmente oligárquica, e a esquerda também, na elite progressista do partido. Ambas consideram o povo incapaz, necessitando de orientação. O próprio povo está de acordo, ansiando por chefes salvadores ou acusando os líderes de todo o mal.
A atitude cultural nem sempre coincide com a estrutura social. A Inglaterra é uma sociedade aristocrata, onde perdura a nobreza e a Câmara dos Lordes, mas com uma cultura de abertura e fair play, apostada na iniciativa, na liberdade e no vigor das dinâmicas populares. A França, pelo contrário, afirmando-se democrática e abominando tirania e desigualdade, prefere planeamento e regras impostas de cima, desconfia visceralmente de liberais e movimentos espontâneos e confia em intelectuais e especialistas.
Portugal, apesar da multissecular aliança britânica, é culturalmente francês. A ideia espantosa de a escrita, manifestação por excelência da vida de um povo, ser negociada por academias e imposta por lei só poderia surgir num país de atitude aristocrata, hoje como na Primeira República. A simples concepção de um Estado intrometido nas nossas cartas e recados nasce de um traço cultural básico. Foi a mesma atitude estatizante que nos trouxe à emergência financeira.
A solução razoável para a questão seria elencar e classificar as diferentes ortografias como variantes vivas e aceitáveis de uma língua dinâmica e florescente. Mas nesse caso o académico seria servidor da língua, não seu juiz. Além disso, evitava-se a oportunidade de criar estruturas burocráticas, com funcionários, comissões e ajudas de custo. As editoras escolares perderiam a pequena fortuna que sai da substituição de toda a bibliografia lectiva e, acima de tudo, desaparecia um belo debate ocioso, abstrato e inútil, excelente para ocultar as verdadeiras dificuldades nacionais.
in http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2327678&seccao=Jo%E3o C%E9sar das Neves&tag=Opini%E3o - Em Foco
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