EVANGELHO - Mc 1,14-20
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Depois de João ter sido preso,
Jesus partiu para a Galileia
e começou a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
Caminhando junto ao mar da Galileia,
viu Simão e seu irmão André,
que lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores.
Disse-lhes Jesus:
«Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens».
Eles deixaram logo as redes e seguiram-n'O.
Um pouco mais adiante,
viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João,
que estavam no barco a consertar as redes;
e chamou-os.
Eles deixaram logo seu pai Zebedeu no barco com os assalariados
e seguiram Jesus.
AMBIENTE
A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objectivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): "Tu és o Messias".
O texto que nos é hoje proposto aparece, exactamente, no princípio desta caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Neste texto, Marcos apresenta aos seus leitores os primeiros passos da acção do Messias libertador.
O lugar geográfico em que o texto nos situa é a Galileia - uma região em permanente contacto com os pagãos e, por isso, considerada pelas autoridades religiosas de Jerusalém uma terra de onde "não podia vir nada de bom". Terra insignificante e sem especial relevo na história religiosa do Povo de Deus, a "Galileia dos gentios" parecia condenada a continuar uma região esquecida, marginalizada, por onde nunca passariam os caminhos de Deus e a proposta libertadora do Messias.
MENSAGEM
O nosso texto divide-se em duas partes. Na primeira, Marcos apresenta uma espécie de resumo da pregação inicial de Jesus (cf. Mc 1,14-15); na segunda, o nosso evangelista apresenta os primeiros passos da comunidade dos discípulos - a comunidade do Reino (cf. Mc 1,16-20).
No breve resumo da pregação inicial de Jesus, Marcos coloca na boca de Jesus as seguintes palavras: "cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho" (Mc 1, 15).
Na expressão "cumpriu-se o tempo", a palavra grega utilizada por Marcos e que traduzimos por "tempo" ("kairós") refere-se a um tempo bem distinto do tempo material ("chronos"), que é o tempo medido pelos relógios. Poderia traduzir-se como "de acordo com o projecto de salvação que Deus tem para o mundo, chegou a altura determinada por Deus para o cumprimento das suas promessas".
Que "tempo" é esse que "se aproximou" dos homens e que está para começar? É o "tempo" do "Reino de Deus". A expressão - tão frequente no Evangelho segundo Marcos - leva-nos a um dos grandes sonhos do Povo de Deus...
A catequese de Israel (como aliás acontecia com a reflexão teológica de outros povos do Crescente Fértil) referia-se, com frequência, a Jahwéh como a um rei que, sentado no seu trono, governa o seu Povo. Mesmo quando Israel passou a ter reis terrenos, esses eram considerados apenas como homens escolhidos e ungidos por Jahwéh para governar o Povo, em lugar do verdadeiro rei que era Deus. O exemplo mais típico de um rei/servo de Jahwéh, que governa Israel em nome de Jahwéh, submetendo-se em tudo à vontade de Deus, foi David. A saudade deste rei ideal e do tempo ideal de paz e de felicidade em que Jahwéh reinava (através de David) sobre o seu povo, vai marcar toda a história futura de Israel. Nas épocas de crise e de frustração nacional, quando reis medíocres conduziam a nação por caminhos de morte e de desgraça, o Povo sonhava com o regresso aos tempos gloriosos de David. Os profetas, por sua vez, vão alimentar a esperança do Povo anunciando a chegada de um tempo, no futuro, em que Jahwéh vai voltar a reinar sobre Israel e vai restabelecer a situação ideal da época de David. Essa missão, na perspectiva profética, será confiada a um "ungido" que Deus vai enviar ao seu Povo. Esse "ungido" (em hebraico "messias", em grego "cristo") estabelecerá, então, um tempo de paz, de justiça, de abundância, de felicidade sem fim - isto é, o tempo do "reinado de Deus".
O "Reino de Deus" é, portanto, uma noção que resume a esperança de Israel num mundo novo, de paz e de abundância, preparado por Deus para o seu Povo. Esta esperança está bem viva no coração de Israel na época em que Jesus aparece a dizer: "o tempo completou-se e o Reino de Deus aproximou-se". Certas afirmações de Jesus, transmitidas pelos Evangelhos sinópticos, mostram que Ele tinha consciência de estar pessoalmente ligado ao Reino e de que a chegada do Reino dependia da sua acção.
Jesus começa, precisamente, a construção desse "Reino" pedindo aos seus conterrâneos a conversão ("metanoia") e o acolhimento da Boa Nova ("evangelho").
"Converter-se" significa transformar a mentalidade e os comportamentos, assumir uma nova atitude de base, reformular os valores que orientam a própria vida. É reequacionar a vida, de modo a que Deus passe a estar no centro da existência do homem e ocupe sempre o primeiro lugar. Na perspectiva de Jesus, não é possível que esse mundo novo de amor e de paz se torne uma realidade, sem que o homem renuncie ao egoísmo, ao orgulho, à auto-suficiência e passe a escutar de novo Deus e as suas propostas.
"Acreditar" não é apenas aceitar um conjunto de verdades intelectuais; mas é, sobretudo, aderir à pessoa de Jesus, escutar a sua proposta, acolhê-la no coração, fazer dela o guia da própria vida. "Acreditar" é escutar essa "Boa Notícia" de salvação e de libertação ("evangelho") que Jesus propõe e fazer dela o centro à volta do qual se constrói toda a existência.
"Conversão" e "adesão ao projecto de Jesus" são duas faces de uma mesma moeda: a construção de um homem novo, com uma nova mentalidade, com novos valores, com uma postura vital inteiramente nova. Vai ser isso que Jesus vai propor em cada palavra que pronuncia: que nasça um homem novo, capaz de amar o próximo (Mt 22,39), mesmo aquele que é adversário ou inimigo (Lc 10,29-37); que nasça um homem novo, que não vive para o egoísmo, para a riqueza, para os bens materiais, mas sim para a partilha (Mc 6,32-44); que nasça um homem novo, que não viva para ter poder e dominar, mas sim para o serviço e para a entrega da vida (Mc 9,35). Então, sim, teremos um mundo novo - o "Reino de Deus".
Depois de dizer qual a proposta inicial de Jesus, Marcos apresenta-nos os primeiros discípulos. Pedro e André, Tiago e João são - na versão de Marcos - os primeiros a responder positivamente ao desafio do Reino, apresentado por Jesus. Isso significa que eles estão dispostos a "converter-se" (isto é, a mudar os seus esquemas de vida, de forma a que Deus passe a estar sempre em primeiro lugar) e a "acreditar na Boa Nova" (isto é, a aderir a Jesus, a escutar a sua proposta de libertação, a acolhê-la no coração e a transformá-la em vida).
A apresentação feita por Marcos do chamamento dos primeiros discípulos não parece ser uma descrição fotográfica de acontecimentos concretos, mas antes a definição de um modelo de toda a vocação cristã. Nesta catequese sobre a vocação, Marcos sugere que:
1º O chamamento a entrar na comunidade do Reino é sempre uma iniciativa de Jesus dirigida a homens concretos, "normais" (com um nome, com uma história de vida, com uma profissão, possivelmente com uma família).
2º Esse chamamento é sempre categórico, exigente e radical (Jesus não "prepara" previamente esse chamamento, não explica nada, não dá garantias nenhumas e nem sequer se volta para ver se os chamados responderam ou não ao seu desafio).
3º Esse chamamento não é para frequentar as aulas de um mestre qualquer, a fim de aprender e depois repetir uma doutrina qualquer; mas é um chamamento para aderir à pessoa de Jesus, para fazer com Ele uma experiência de vida, para aprender com Ele a ser uma pessoa nova que vive no amor a Deus e aos irmãos.
4º Esse chamamento exige uma resposta imediata, total e incondicional, que deve levar a subalternizar tudo o resto para seguir Jesus e para integrar a comunidade do Reino (Pedro, André, Tiago e João não exigem garantias, não pedem tempo para pensar, para medir os prós e os contras, para pôr em ordem os negócios, para se despedir do pai ou dos amigos, mas limitam-se a "deixar tudo" e a seguir Jesus).
O Evangelho deste domingo apresenta, portanto, o convite que Jesus faz a todos os homens no sentido de integrarem a comunidade do Reino; e apresenta também um modelo para a forma como os chamados devem escutar e acolher esse chamamento.
ACTUALIZAÇÃO
• Quando contemplamos a realidade que nos rodeia, notamos a existência de sombras que desfeiam o mundo e criam, tantas vezes, angústia, desilusão, desespero e sofrimento na vida dos homens. Esse quadro não é, no entanto, uma realidade irremediável a que estamos para sempre condenados. Nos projectos de Deus, está um mundo diferente - um mundo de harmonia, de justiça, de reconciliação, de amor e de paz. A esse mundo novo, Jesus chamava o "Reino de Deus". É esse projecto que Jesus nos apresenta e ao qual nos convida a aderir. Somos chamados a construir, com Jesus, um mundo onde Deus esteja presente e que se edifique de acordo com os projectos e os critérios de Deus. Estamos disponíveis para entrar nessa aventura?
• Para que o "Reino de Deus" se torne uma realidade, o que é necessário fazer? Na perspectiva de Jesus, o "Reino de Deus" exige, antes de mais, a "conversão". Temos de modificar a nossa mentalidade, os nossos valores, as nossas atitudes, a nossa forma de encarar Deus, o mundo e os outros para que se torne possível o nascimento de uma realidade diferente. Temos de alterar as nossas atitudes de egoísmo, de orgulho, de auto-suficiência, de comodismo e de voltar a escutar Deus e as suas propostas, para que aconteça, na nossa vida e à nossa volta, uma transformação radical - uma transformação no sentido do amor, da justiça e da paz. O que é que temos de "converter" - quer em termos pessoais, quer em termos institucionais - para que se manifeste, realmente, esse Reino de Deus tão esperado?
• De acordo com a Palavra de Deus que nos é proposta, o "Reino de Deus" exige também o "acreditar" no Evangelho. "Acreditar" não é, na linguagem neo-testamentária, a aceitação de certas afirmações teóricas ou a concordância com um conjunto de definições a propósito de Deus, de Jesus ou da Igreja; mas é, sobretudo, uma adesão total à pessoa de Jesus e ao seu projecto de vida. Com a sua pessoa, com as suas palavras, com os seus gestos e atitudes, Jesus propôs aos homens - a todos os homens - uma vida de amor total, de doação incondicional, de serviço simples e humilde, de perdão sem limites. O "discípulo" é alguém que está disposto a escutar o chamamento de Jesus, a acolher esse chamamento no coração e a seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida. Estou disposto acolher o chamamento de Jesus e a percorrer o caminho do "discípulo"?
• O chamamento a integrar a comunidade do "Reino" não é algo reservado a um grupo especial de pessoas, com uma missão especial no mundo e na Igreja; mas é algo que Deus dirige a cada homem e a cada mulher, sem excepção. Todos os baptizados são chamados a ser discípulos de Jesus, a "converter-se", a "acreditar no Evangelho", a seguir Jesus nesse caminho de amor e de dom da vida. Esse chamamento é radical e incondicional: exige que o "Reino" se torne o valor fundamental, a prioridade, o principal objectivo do discípulo.
• O "Reino" é uma realidade que Jesus começou e que já está decisivamente implantada na nossa história. Não tem fronteiras materiais e definidas; mas está a acontecer e a concretizar-se através dos gestos de bondade, de serviço, de doação, de amor gratuito que acontecem à nossa volta (muitas vezes, até fora das fronteiras institucionais da "Igreja") e que são um sinal visível do amor de Deus nas nossas vidas. Não é uma realidade que construímos de uma vez, mas é uma realidade sempre em construção, sempre a fazer-se, até à sua realização final, no fim dos tempos, quando o egoísmo e o pecado desaparecerem para sempre. Em cada dia que passa, temos de renovar o compromisso com o "Reino" e empenharmo-nos na sua edificação.
PALAVRA DE VIDA.
Troca de olhares... Diz-se muita coisas nestes olhares trocados! João Baptista põe o seu olhar em Jesus e diz quem Ele é. Jesus olha André e o seu companheiro, interroga-os e convida-os a vir e a ver. Estes vêem onde Ele mora e ficam com Ele. André leva o seu irmão a Jesus que põe nele o seu olhar e dá-lhe um novo nome, o que é todo um programa. Olhares que interrogam, olhares que nomeiam, olhares que convidam, olhares que dizem a amizade. Se Jesus olha os homens, é porque Deus os olha. Deixemo-nos olhar por Deus e aceitemos olhá-l'O, olhando o seu Filho Jesus. Então pode-se estabelecer a relação.
PARA A SEMANA QUE SE SEGUE...
Voltarmo-nos para Cristo... Em comunidade, é bom ouvir o apelo à conversão: as nossas maneiras de viver e de trabalhar devem também, sem cessar, ser regeneradas para melhor corresponder àquilo que Cristo espera de nós. É preciso que, juntos, nos viremos para Ele. E o Evangelho deste domingo é a ocasião para um tempo de discernimento que muito raramente fazemos.