A mulher mais importante de Portugal?
por ANSELMO BORGES
Uma vez, numa entrevista na rádio, um jornalista atirou-me: "qual é a mulher
mais importante de Portugal?" E eu, naquela perplexidade de quando somos
apanhados de surpresa: "Penso que é Nossa Senhora, Maria, a mãe de Jesus."
À distância e mais reflectidamente, julgo que respondi bem, pois é mesmo
isso: Maria, a mãe de Jesus, Nossa Senhora, é, muito provavelmente, a mulher
mais importante de Portugal e, possivelmente, até a mais influente. Pergunto a
mim próprio o que seria a Igreja em Portugal sem Fátima e mesmo o que seria o
país sem a Nossa Senhora. Frei Bento Domingues foi quem melhor definiu Fátima:
"o cais de todas as lágrimas dos portugueses."
Assim, lá está Fátima e milhões de peregrinos, as romarias em todas as
cidades, vilas e aldeias, uma devoção enraizada, mesmo para lá da prática
religiosa oficial. Talvez porque a Igreja é profundamente masculina - Deus é
Pai, Filho e Espírito Santo; a hierarquia é masculina: papa, bispos, padres,
diáconos - e porque os portugueses interiorizaram uma imagem tradicional severa
do pai, Maria aparece como almofada e afago, sobretudo em tempos dramáticos de
crise, de guerra, de becos sem saída. É a Mãe.
Tem mesmo direito a dois dias santos de guarda, com feriado nacional. Um
deles celebra-se hoje: a Imaculada Conceição. Ninguém sabe ao certo o que é que
a maioria dos portugueses, mesmo católicos praticantes, entende por isso, isto
é, o que se celebra na Imaculada Conceição Alguns pensarão na virgindade de
Maria. Mas, de facto, o que se celebra tem a ver com a doutrina do pecado
original, segundo a qual todos os seres humanos nascem em pecado, por causa do
pecado de Adão e Eva. Maria, porém, constituiria uma excepção, pois foi
concebida sem pecado.
Ora, é preciso confessar que precisamente aqui se concentra um nó de
confusões. O Evangelho desconhece essa doutrina, que provém fundamentalmente de
Santo Agostinho: em Adão, todos pecaram. Mas como sustentá-la, no quadro da
evolução, quando ninguém sabe quem foram os primeiros humanos, já que a tomada
de consciência foi lenta e progressiva?
E quem acredita sinceramente que os seres humanos são gerados em pecado? Uma
vez, uma senhora, numa conferência, atirou-me que sempre era verdade que sou
herege, pois nego o pecado original. Perguntei-lhe, porque é mãe de duas filhas,
se acreditava sinceramente que elas tinham sido geradas em pecado e se ela tinha
andado ao todo 18 meses com o pecado dentro dela. E ela, fulminante: "Nem
pensar!" Conclusão: quando a fé não é reflectida como razoável, assistimos à
dissonância entre o que se diz crer e o que realmente se crê. Afinal, o que está
no Génesis é, decisivamente, em linguagem simbólica, outra coisa: o significado
da passagem da animalidade à humanidade: como seres humanos, temos consciência
de sermos únicos e mortais - cada um é ele/ela e sabe de si como único e
mortal.
Maria não é importante por ser mãe de Jesus, mas, como diz o Evangelho, por
tê-lo acompanhado, mesmo quando não compreendia. Procurou entender e seguiu-o
até à cruz. E tornou-se sua discípula, convertendo-se ao Deus que Jesus
anunciou: o Deus-amor, que não nos abandona, nem mesmo na morte, que é próximo
de todos, que quer a libertação de todos, a começar pelos mais fracos,
humilhados e ofendidos - entre estes estão as mulheres
Como escreveu o biblista Xabier Pikaza, numa longa e densa investigação sobre
o Evangelho, "Jesus não quis algo de especial para as mulheres. Quis, para elas,
o mesmo que para os homens. Não procurou um lugar especial para elas, mas o
mesmo lugar de todos, isto é, o dos 'filhos de Deus'". Depois, veio a traição:
"Ao transformar-se em instituição de poder religioso e social, deixando de ser
um movimento messiânico de libertação, a Igreja teve de aceitar as estruturas
normais de poder, que tinha estado (e estava) nas mãos de homens. Logicamente,
os homens justificaram depois essa situação (domínio patriarcal) com
pseudo-argumentos religiosos, que vão contra o espírito de Jesus."
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